2022/05/15 – Quando as neurociências não ajudam

As neurociências estão por todo o lado. Estão na moda e falam de (quase) tudo. Impõem-se cada vez mais e tornam-se imprescindíveis em áreas como a educação, o desporto, o marketing e a política, obviamente a medicina e a psicologia. Sabe-se muito mais, de tudo. No que respeita à clínica psicológica, talvez se saliente o funcionamento motor e cognitivo, o comportamento e as emoções, as adições e mesmo como tudo vai interagindo. A investigação vai tão longe que já se permite confirmar hipóteses que em tempos se julgavam impossíveis. Falo, por exemplo, de Freud, médico neurologista visionário que considerou a existência de uma atividade inconsciente (para os mais céticos ou os mais interessados, ver, por exemplo a obra de Mark Solms). Todo este avanço cientifico é admirável, ainda que haja muito por descobrir, e deve-se à curiosidade e génio da humanidade, que procura conhecer melhor o modo como funciona.

Mas nem tudo parecem ser ou são boas noticias. Com base nas neurociências, são hoje em dia mais raras as obras que não se socorrem, e bem, de uma visão mais biológica para sustentar as suas teorias e abordagens (falo mais da psicologia e do comportamento). As pessoas lêem e adotam vocabulário que, nem sendo mal colocado, pode ser evitado. Não o dominam, não o conhecem. Com a divulgação de tantos conhecimentos, vão surgindo teóricos fáceis, daqueles instantâneos, que rapidamente adquirem uma visão que julgam suficiente e com respostas para tudo. A este propósito, recordo-me de ouvir um comentário fascinante. Em conversa de amigos e perante um bebé que não estava a conseguir dormir, disse uma mãe alarmada: ”beeemmm…, e como estavam os níveis de cortisol??” (para o caso, importa dizer que o cortisol é uma hormona associada ao stress, que aumenta com a falta de sono, o que pode levar a maior irritabilidade no bebé). Já em contexto clínico, nota-se uma tendência crescente para recorrer ao argumento dos neurotransmissores.

É ciência! Como não aceitar esta perspetiva? Então despontam observações como: “porto-me desta maneira porque preciso de adrenalina” (neurotransmissor associado à excitação, ao perigo e ameaça) ou “vou ao facebook e acho que procuro ter mais likes. Na realidade porque preciso de dopamina” (neurotransmissor associado ao prazer e, como se sabe, às adições). É uma explicação sofisticada, sem dúvida, revestida de intelectualidade e autoridade cientifica! Mas é também pobre e redutora. É pobre porque impede uma maior compreensão de si próprio, porque se torna um impedimento de uma elaboração interior mais ampla e profunda. Talvez fosse importante compreender por que preciso desse like, ou por que importa tanto a quantidade de visualizações às publicações (solidão? Desvalorização pessoal que procura compensação externa? Sentimento de vazio? As hipóteses são muitas, as respostas até podem ser várias. É importante compreender e aprender a lidar com isso). Certamente terá um significado e uma representação que importa conhecer. Claro que há neurotransmissores, sobejamente conhecidos, que estão ligados a alterações do humor (a serotonina, a dopamina, a adrenalina, etc). A dopamina tanto aparece com esse like, como ao estar num café com pessoas que gosto. E não será diferente? O modo como a ação se inscreve na nossa história não se deve ao acaso, molda-nos e muda-nos. Se o foco é alimentar uma fonte de prazer, de forma rápida, que se pode tornar difícil de saciar, numa postura hedonista, então, infelizmente, é provável que as coisas não acabem bem. Se essa perspetiva biológica, importada de forma simplista, imediatista explicativa prevalecer, se nos pendurarmos nessas justificações, deixamos de nos saber ler, de contactar com o nosso interior, para o bem e para o mal. Tornamo-nos estranhos a nós próprios. O uso desses conceitos, de uma forma abusiva e deslocada, favorece o desvio à introspecção (muitas vezes mais confortável!) e ao conhecimento único e individual, à responsabilização por si próprio. Leva a uma mente dormente, afastada do sentir. Também prejudica o relacionamento com os outros! O que interessa, a uma mãe, o cortisol do referido bebé?? Esse não pode ser o foco, não pode ser a medida das coisas. A apropriação de termos científicos e consequente aplicação pelo senso comum leva, de alguma maneira forma, à desumanização e ao desencontro.

E é aqui que as neurociências podem não ajudar, mas até atrapalhar.

Luís Ferraz – Psicólogo do CADIn  
CADIn – Neurodesenvolvimento e Inclusão
Texto publicado pelo Público a 15/05/2022

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