2022/06/19 – Maus tratos na infância – que caminhos?

Nas últimas três décadas tem-se assistido a uma mudança de paradigma no modo como olhamos e pensamos a infância, e mais particularmente os maus tratos infantis.

Em 1990 Portugal assinou a Convenção sobre os Direitos da Criança, que nos diz que devem ser tomadas medidas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abandono ou negligência. Desde 2007 que no nosso país os castigos físicos constituem um crime no código penal. Hoje em dia,  a voz das crianças, as suas opiniões e os seus direitos são  mais levados em conta, mas será que estamos num bom caminho?

Longe vão os tempos da palmatória nas escolas e como sociedade temos feito enormes progressos, no entanto, os dados da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens em risco dizem-nos que todos os anos são comunicadas cerca de 40.000 situações de perigo. Muitas outras haverá que nunca serão traduzidas em números. Na família, como em todas as instituições, há valores e normas que não têm acompanhado estas conquistas no que diz respeito à proteção das crianças. Por exemplo, a ideia de que existem “palmadas pedagógicas”, que  cabe apenas aos pais educar as crianças ou que não nos devemos intrometer num conflito familiar, mesmo que uma criança esteja a ser maltratada perante os nossos olhos e/ou ouvidos.

A ciência e a prática clínica não nos deixam enganar. É certo e sabido que os maus tratos têm consequências muito graves para o desenvolvimento das crianças. Uma criança que foi batida, negligenciada ou humilhada é uma criança que tem maior probabilidade de ter danos na sua autoestima, dificuldades de aprendizagem e problemas de vinculação bem como na relação com os pares. São ainda comuns sentimentos de angústia, raiva, tristeza e ansiedade, por vezes relacionados com quadros de psicopatologia. Quando um adulto é sistematicamente mal-tratante, a criança instaura este padrão de agressividade e leva-o para a sua adolescência e idade adulta. Sente que para obter ou oferecer afeto, precisa de ser mal tratada ou maltratar. É urgente travar esta dinâmica, muitas vezes transgeracional.

Estamos sempre a tempo de mudar!

É compreensível e normativo que os pais e educadores sejam confrontados, face às crianças, com sentimentos de raiva, tristeza e frustração. A questão é o que fazem com o que sentem . Ao invés do caminho da impulsividade e da agressividade, podemos pensar num outro alternativo – usar estes sentimentos difíceis para tentar melhor compreender as crianças e a nós próprios. Quando, na relação criança-cuidador, surgem estas emoções, é importante que o adulto pare e olhe para dentro de si, que tente compreender “de onde vem o que estou a sentir?” e “como posso geri-lo em mim e na criança?”. Um comportamento desadequado de uma criança tem sempre uma explicação por trás. Cabe ao adulto ajudá-la a tentar desvendar o que se passa, através da relação, da comunicação e da compreensão. O cuidador tem esta enorme responsabilidade de ser o modelo, o exemplo da criança. Assumindo sempre que se pode errar e pedir desculpas, e também que pode (e deve) pedir ajuda de um Profissional de saúde mental sempre que necessário. Se assim for, o tal caminho da violência pode ser evitado.

Mais vale prevenir que remediar, e muito trabalho tem sido feito para a prevenção dos maus tratos – ações de formação em creches e escolas, para pais e educadores e até mesmo campanhas nacionais.  Atualmente está em curso a campanha do Instituto de Apoio à Criança, “nem mais uma palmada”, que pretende combater todas as formas de violência contra as crianças, com especial foco nos castigos corporais. Os adultos hoje estão mais preparados para ouvir as crianças, e cada um de nós tem esta missão de protegê-las e de saber ler sinais de que possam estar em perigo (e denunciar quando há suspeita). 

Contudo, há ainda muito trabalho a fazer no sentido de proteger as crianças e jovens dos maus tratos. É urgente prevenir, sensibilizar e atuar. É também essencial que os pais e educadores estejam atentos ao que se passa dentro deles, que possam estar em contacto com as crianças que foram no passado e que se questionem: “de que forma posso trazer aos meus filhos novas experiências relacionais e novas formas de resolução de conflitos que promovam a felicidade e o bem estar da família?”.

Laura Vasconcelos – Psicóloga do CADIn  
CADIn – Neurodesenvolvimento e Inclusão
Texto publicado pelo Público a 19/06/2022

Consulte aqui os nossos Termos de Utilização & Política de Privacidade