2015/09/04 – Vamos brincar?

Com o aproximar do início de setembro as famílias voltam a estruturar-se. Primeiro é imperativo organizar tudo para o início das aulas: mochila da Violeta, lápis com duas cores, afias eléctricos, borrachas caneta, quilos de manuais, um sem fim de materiais. Depois são os horários, quem vai levar, quem vai buscar, onde faz os TPC. Começamos o ano lectivo já ansiosos e a pensar que é só o início.

Cada vez mais se pensa sobre o que têm as crianças de aprender. Elaboram-se metas e para as cumprir retiramos tempo de recreio para os meninos terem tempo de aprender tudo. Vivemos a nossa vida regulada por agendas e fazemos também a agenda para os nossos filhos. Não existem momentos de liberdade, mas apenas momentos de “Tens de…”: ir para a escola, ir para o futebol, ir à explicação.

Enquanto pais e professores temos consciência que as nossas crianças trabalham mais tempo que a maioria de nós trabalhou: têm aulas, têm as Actividades de Enriquecimento Curricular (AEC’s), têm os trabalhos de casa, têm explicações, com sorte têm tempo para fazer um desporto ou andar nos escuteiros. No fim do dia, quando não querem estudar, ainda existe uma grande probabilidade de ouvirem: “Tu nunca queres estudar!”, “Este rapaz é um preguiçoso!” ou “Tu só queres é brincadeira”.

Nós tínhamos mais tempo para correr, saltar, trepar e sujar. Os nossos pais por muito protectores que tenham sido, davam-nos mais liberdade, estávamos só no início da Era da Informação. Pais, os nossos filhos passam o dia sentados, é urgente mexerem-se!

Adequarmos aos dias de hoje sim, livres de saudosismos mas com a perspectiva de que é importante para o seu desenvolvimento psicomotor, para conheceram melhor o seu corpo como algo que experimenta e permite ao cérebro registar o que vivemos, isto é aprender.

É amplamente conhecida a necessidade do exercício físico e do jogo espontâneo, pelo desenvolvimento saudável, a nível biológico e social. Lembrem-se que o jogar, brincar ou exercitar dão oportunidade à criança de fazer um mapeamento de experiências, de emoções, de frustrações e de sucessos.

Quando corro no recreio tenho energia acumulada de horas seguidas de aula, ali tenho permissão para ser criativo a nível motor, posso explorar a rua e pensar em brincadeiras livres onde posso usar o meu corpo e assim aprender os seus limites, aprendo a lidar com as adversidades do meio e das relações com os colegas. Posso viver e aprender o meu corpo. Não basta carregar no ícone do jogo quando quero começar a jogar até me dizerem que tenho que parar. Percebo que há momentos que são próprios para a liberdade motora e outros em que vou ouvir um “Não” ou um “Está quieto!” se o fizer.

As crianças gostam de brincar e de fazer exercício e são eficazes nisso, tal como se espera que sejam por ser tão fundamental. Porém para algumas não é assim. Existem aquelas que por impossível que possa parecer não gostam de Educação Física, ou até gostam mas são mesmo muito pouco eficientes. Cada vez nos chegam mais pais com estas queixas, que há alguns anos atrás pareceriam absurdas: “Doutora ele é bom a tudo mas tem negativa a Educação Física e a EVT”, ou “Acredita que ele faz birra cada vez que vai para a Ginástica?”.

Quando falamos com os pais vemos que a estória é mais antiga do que parecia. Começou a andar tarde, sempre foi muito trapalhão e propício a acidentes, sempre teve pouco à vontade com as brincadeiras mais dependentes da destreza motora, os desenhos eram piores que os dos colegas e recortar não era com ele. Na entrada para a escola aprendeu com facilidade todas as matérias, mas a letra é difícil de ler, não é bom nas artes plásticas e está sempre a ter acidentes. Às vezes parece não haver um dia que chegue limpo a casa. As brincadeiras que envolvam fazer movimentos rápidos, brincar com bolas ou equilibrar-se são especialmente difíceis. Parece uma criança inteligente e curiosa mas tem uma dificuldade atroz na coordenação motora. Atenção pais, podemos estar perante uma Perturbação do Desenvolvimento da Coordenação Motora.

Este diagnóstico só deve ser feito em idade escolar e a investigação sugere-nos com maior frequência uma prevalência de 5% a 6% na população, mas devemos estar atentos e encaminhar para avaliação em psicomotricidade caso estas dificuldades tenham impacto no quotidiano.

Repare que na infância a maioria das brincadeiras têm que ver com experiências motoras, se o seu filho à partida tem uma dificuldade acentuada em fazê-lo pode levar também a comprometimentos na relação com os colegas. Recordo um menino que há uns tempos me disse: “Eu não sei brincar”, com um ar muito desiludido. Se um menino não gosta de jogar futebol no recreio tem necessariamente dificuldades na coordenação motora? Não. Dificuldades em compreender o que o rodeia ou em estar atento ao meio podem ser igualmente impeditivos, bem como o próprio meio social, cultural e físico pode propiciar ou inibir o aparecimento destas características. Claro está que nós raramente gostamos de fazer coisas em que não somos bons, actualmente sabemos que existe uma probabilidade maior destas crianças se tornarem adultos sedentários, o que pode trazer problemas de saúde associados como por exemplo a obesidade.

Um estudo da Pick, Bradbury, Elsley & Tate (2008) refere inclusive que estas crianças começam a ter um baixo autoconceito ainda na pré-escola e que algumas demonstram dificuldades na gestão da ansiedade desde então.

No dia-a-dia surgem coisas simples que podemos fazer com os nossos filhos para os ajudar num desenvolvimento psicomotor saudável: incentive-o a praticar actividade física, principalmente pela diversão, não pela competição; vá com ele a parques ou sítios onde possa correr e brincar com outras crianças de forma espontânea; faça programas familiares que promovam o gosto pela actividade física, caso ele não goste tente entusiasmá-lo por outros motivos, por exemplo fazer uma caminhada para ver os animais ou as plantas do pinhal; incentive-o a construir, rasgar, moldar, cortar, montar coisas progressivamente mais complexas, por exemplo cada vez com mais pormenores ou mais pequenas; inclua-o em actividades quotidianas que envolvam tarefas de motricidade global ou fina, como por exemplo cozinhar.

Termino citando o Professor Carlos Neto (s.d.), no artigo “Jogo na criança e desenvolvimento psicomotor”: “actividades (motoras) apresentam um significado profundo em termos de necessidades biológicas e sociais, sendo realizadas habitualmente (dependendo da ambivalência do comportamento dos adultos) com grande prazer e entusiasmo. A atitude lúdica associada ao desenrolar destas actividades motoras, conferem a exercitação da função e sentido de intencionalidade, que, sendo imediatas, permitem ao ser humano uma relativa e confortável capacidade de adaptação ao longo da vida em relação aos desafios do seu envolvimento físico e social.” Lembrando o início deste texto recordo que se não houver experiência não há aprendizagem, por isso lanço-vos um desafio: “Vamos brincar?”.

Cátia Sacadura – Psicomotricista
CADIn – Neurodesenvolvimento e Inclusão
Texto publicado pelo Público a 04/09/2015

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