
Uma questão recorrentemente levantada por educadores, professores, pais, familiares e técnicos tem a ver com o uso de medicação em casos de ‘hiperatividade’, quebra de rendimento escolar, modificações de humor e alterações do comportamento.
Toda a gente foi construindo alguma opinião a este respeito, informada por familiares, técnicos e sobretudo pela internet. O ruido à volta deste tipo de questão pode ser particularmente alto, importando dados que muitas vezes não foram comprovados ou que já há muito foram desmentidos.
E não são só os leigos nestas matérias que podem ter opiniões baseadas em factos erróneos. Há cerca de um ano, quando a questão foi levantada do excesso destas medicações dispensadas no nosso Pais, alguém com responsabilidades nesta área descreveu o efeito ‘calmante’ como o objectivo procurado pela medicação… estimulante!
Uma situação complexa não pode ser abordada de forma simples. E não pode confundir sintomas, conjuntos de sintomas, perturbações e patologias.
O erro de medicar pelas consequências, ignorando as causas
Uma criança que não para quieta na sala de aula pode ter tudo e não ter nada. Se se mexe mais do que o esperado para a sua idade, pode ser que nunca tenha tido ninguém que lhe chamasse a atenção, pode sentir que não consegue acompanhar os conteúdos, pode estar preocupada com questões mais urgentes para ela, reais ou imaginadas (ser vitima de bullying no recreio, reconhecer risco de doença ou de separação dos pais, por exemplo). Ou pode simplesmente estar distraída, ‘ausente’, mas sossegada… A importância dos factores genéticos veio claramente a ser reconhecida. Portanto num contexto de predisposição ‘hereditária’, que por si só pode perfeitamente não constituir um entrave ao aproveitamento/comportamento académico, um imenso conjunto de circunstâncias, em casa e na escola, pode fazer ‘emergir’ o comportamento desatento, irrequieto, com o seu cortejo de consequências…
Nestas alturas pode pôr-se o problema de medicar ou não medicar, conforme sugestão de familiares ou professores… É uma questão tão difícil de responder como a da pertinência de um antibiótico numa infecção. Há toda uma série de perguntas que precisam de ser respondidas primeiro (se é viral, se é bacteriana, se o organismo consegue vencê-la por si, se há risco de se eternizar, de alergia, etc., etc.). Com a desatenção é o mesmo. Que tendência ‘distráctil´ existe e há quanto tempo, que factores recentes podem tê-la feito aparecer agora, que relação com as suas capacidades escolares numa ou noutra área (por exemplo, a dificuldade de concentrar pode ser muito mais difícil na leitura do que no cálculo).
Uma situação que aparece muito na consulta, sobretudo no início da escolaridade obrigatória, é a da criança que não consegue ficar quieta na sala de aula, que interrompe a professora, que se levanta e que recusa fazer os trabalhos na sala. E que amua ou se afasta das outras no recreio quando não fazem as coisas como ela gosta. Isto apesar da sua simpatia e das suas reconhecidas capacidades para aprender. Também na natação, ou em casa dos avós, pode haver este tipo de queixas. Um olhar para este conjunto de manifestações será fundamental para perceber se se inscreve nos critérios habituais da chamada ‘phda’ (…) ou se, pelo contrário, se trata de um padrão enraizado de comportamento em casa e de interacção com os adultos e os pares. Crianças que interrompem os adultos constantemente, que se habituaram desde sempre a só fazer as coisas com repetidos pedidos e explicações dos pais, que só após ‘negociação’ é que cumprem as tarefas de todos os dias estão na primeira linha para exibirem estas dificuldades comportamentais, de serem rotuladas de hiperactivas e de serem medicadas em consulta.
As consequências de medicar, ignorando as causas
E ficam todos contentes, os professores porque gostam deles sossegados, os pais porque acabam as queixas, os médicos porque a medicação resulta. Até talvez as crianças porque reconhecem que precisam das ‘vitaminas’ para ter boas notas. Ficam duas questões por esclarecer. A primeira é a de que mesmo podendo haver uma tendência significativa na sua dificuldade de concentração, na sua facilidade em se distrair, passível de ser melhorada pela medicação, deixam de ser pensados e prevenidos todos os outros factores que podem estar na base da actual dificuldade ou estar a agravar esta sua tendência genética. Portanto inquietações, alterações do sono, depressão, desadequação por dificuldades específicas de aprendizagem, reconhecimento de regras, etc, tudo isso é varrido para debaixo do tapete. A segunda tem a ver com o facto de se poder manter um padrão de irresponsabilidade do próprio, no respeito pelos outros e na necessidade de lutar pelos seus objectivos, os escolares sobretudo. A prazo a medicação, só por si, não vai ajudar nada a resolver esta dependência de terceiros. A imaturidade veio para ficar.
A medicação não é uma droga, não provoca habituação, dependência ou tolerância, e os seus efeitos secundários, tão falados na net, são de facto menores comparados com a sua capacidade, que é real, de ajudar a concentrar. Podemos é estar a enganarmo-nos todos, pais, professores, e técnicos, quando o objectivo é ‘tratar’ a chamada ‘hiperactividade’ em vez da desatenção. Enganamo-nos todos sobretudo quando são ignorados ou esquecidos os tais factores que podem estar na base, ou contribuir para agravar, a desadequação escolar.
Porque neste ignorar das causas, que a medicação pode permitir, corremos o risco sério de adiar a construção da responsabilidade, pelo próprio, na gestão das suas tarefas e objectivos. Quando a tal hiperactividade tiver desaparecido, com o tempo, podemos encontrar um jovem ‘imaturo’ porque desatento, incapaz de trabalhar sòzinho ou sem ser pressionado, indiferente aos resultados, esperando que as coisas se resolvam com o tempo. Medicar ou não? A questão não pode ser essa.
Pedro Cabral – Neurologista Pediátrico
CADIn – Neurodesenvolvimento e Inclusão
Texto publicado pelo Público a 22/01/2017
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