2017/05/21 – Adolescência, internet e automutilação

Após as notícias do jogo baleia azul, não deve ter havido profissional de saúde mental que não fosse abordado por vários pais e adolescentes com muitas questões… e o CADIn não foi exceção.
Como podem os jovens entrar num “jogo” deste tipo? Como têm coragem para se cortar? Os pais, os educadores, as pessoas não entendem.
Apesar de todas as dúvidas as respostas são mais simples do que parecem… não justificam o ato mas ajudam a perceber.

Bem-vindo à adolescência
A verdade é que entrar num “jogo” é fácil, mesmo sabendo muitos dos riscos que acarreta… a necessidade de se colocarem à prova juntamente com a sensação de invulnerabilidade (só acontece aos outros e eu tenho o controlo da situação), típica dos adolescentes, é uma bomba nestes casos. Quanto à coragem para se automutilarem…para alguns não é preciso assim tanta coragem para o fazer, e porquê? Porque a sensação de alguns destes jovens é de que são invisíveis… Invisíveis aos olhos dos outros e muitas vezes invisíveis também aos seus olhos. Isto é consequência direta de vivências de indiferença, preconceito, ou até das implicações do mundo virtual. 
Como fatores de risco, parece claro que jovens com maior fragilidade emocional, instabilidade familiar, baixa auto estima, vitimas de bullying e cyberbullying, impulsivos e com forte sentido de autocrítica são os que mais facilmente se deixam “seduzir” não só pelo tipo de jogo mas por tudo o que lhe é pedido posteriormente. Contudo, a curiosidade também pode ser um fator de risco: a verdade é que temos uma geração curiosa e que à distancia de um click encontram todas as respostas que precisam… umas melhores que outras, umas mais verdadeiras que outras, umas que salvam e outras que não.

A automutilação
A automutilação, deliberada destruição do tecido corporal sem intenção suicida consciente, surge como forma de se voltarem a sentir vivos, atenuar as sensações de vazio e de raiva. Surge muitas vezes como uma substituição da expressão verbal dos sentimentos e transmite-lhes a sensação de controlo sobre si próprios. 
Descrevem estes jovens que posteriormente ao ato vem a sensação de alívio temporário mas também a culpa e a vergonha (sentimento regulador de coesão social). E assim se dá início a um ciclo difícil de quebrar. O vazio e a solidão são mais perturbadores do que a dor pelo que se segue corte atrás de corte como meio de evitar a angústia. 
No que ao suicídio diz respeito é importante que os pais possam reconhecer os sinais que, segundo Shneidman, são comuns a todo o suicida: a) dor psicológica; b) perda de autoestima; c) alteração de pensamento; d) isolamento; e) desesperança e f) fuga.

Particularidades do mundo virtual
Apesar dos atos de automutilação serem maioritariamente realizados de forma solitária são muitas vezes potenciados pelos grupos. Tal como alertou recentemente a Associação de Psiquiatria da Infância e da Adolescência: os comportamento autolesivos (tanto os suicidários como os não suicidários – vulgo “cortes”, “automutilações”) são altamente propensos a fenómenos de contágio e imitação, sobretudo em jovens adolescentes, podendo gerar verdadeiras “epidemias”. (cit.)
As redes sociais não são as culpadas… pelo contrário, para muitos jovens tímidos, com ansiedade social ou marginalizados, abriram portas à socialização num caminho até aqui muito difícil de fazer até à satisfação da necessidade de pertença… “Aqui (grupo de uma rede social) sinto-me seguro, pertenço a um grupo que me apoia e que está disponível dia e noite… sempre que eu preciso!” palavras de um jovem adolescente em acompanhamento na consulta de psicologia clínica do CADIn. 
Acontece, porém, que estes mesmos grupos se tornam terrenos férteis para a propagação de crenças e outras ideias que podem, muitas vezes, agravar os sintomas que conduzem os jovens à sua procura, reforçar distorções cognitivas acerca do mundo e de si mesmos, potenciar a negatividade do humor e alimentar até ideação suicida.
É, por isso, fundamental que os pais não se deixem iludir com um filho aparentemente seguro em casa pois o ecrã que tem nas mãos pode ser uma porta escancarada para o precipício do qual estava já apenas a um passo de distância.

Júlia Vinhas – Psicóloga Clínica e coordenadora da Unidade CADIn de Setúbal
Rosário Carmona – Psicóloga
CADIn – Neurodesenvolvimento e Inclusão
Texto publicado pelo Público a 21/05/2017

Consulte aqui os nossos Termos de Utilização & Política de Privacidade