2020/01/19 – Ninguém acredita na minha tristeza

O conhecimento acerca das manifestações da doença mental e o seu reconhecimento no próprio ou nos outros são essenciais para a procura e seleção dos cuidados adequados.

A literacia em saúde é definida pela Organização Mundial da Saúde como o conjunto de “competências cognitivas e sociais e a capacidade dos indivíduos para ganharem acesso a compreenderem e a usarem informação de formas que promovam e mantenham boa saúde”. No caso particular da Saúde Mental, o conceito de literacia foi inicialmente definido por Jorm no final dos anos 90 como o “conhecimento e crenças acerca das perturbações mentais que ajudam no seu reconhecimento, tratamento ou prevenção”. O conhecimento acerca das manifestações da doença mental, e o seu reconhecimento no próprio ou nos outros, é essencial para a procura e seleção dos cuidados adequados, para otimizar a adesão aos tratamentos e para diminuir a estigmatização das pessoas com doença mental.

Frequentemente, as pessoas com quadros ansiosos e depressivos referem uma sensação de incompreensão relativamente aos seus sintomas – quer em relação a si próprias, sobretudo quando os sintomas surgem na ausência de um contexto que os justifique (nem todos os quadros ansiosos e depressivos são reativos a fatores causais externos!), mas sobretudo uma sensação de desvalorização dos seus sintomas pelos outros, em particular por aqueles que lhes são mais próximos e que melhor deveriam compreender o seu sofrimento. E isto perante sintomas e sinais muitas vezes óbvios e fáceis de descrever – na verdade, a depressão é das doenças mentais com níveis de reconhecimento mais elevados, talvez por ser uma das mais relevantes causas de incapacidade a nível mundial e por, depois das perturbações ansiosas, ser das doenças mentais com maior prevalência. Adicionalmente, a experiência no próprio ou em pessoas próximas de determinada doença associa-se habitualmente a um maior conhecimento sobre a mesma e ao seu mais fácil reconhecimento nos outros. No entanto, se esse conhecimento se basear em preconceitos e convicções não fundamentadas, será mais difícil reconhecer o problema e procurar e encontrar as melhores soluções; por outro lado, se a isto aliarmos a ausência de uma adequada capacidade empática, poderá ser igualmente complicado reconhecer e validar o sofrimento (que parecerá) invisível do outro, o que necessariamente limita a possibilidade de ajudar essa pessoa a procurar e aceder ao tratamento de que necessita.

Se pensarmos em patologias menos frequentes (e menos compreendidas), como as perturbações do espetro do autismo, o risco das consequências de uma baixa literacia em saúde será ainda maior. Isto é particularmente verdadeiro para as formas menos graves e mais funcionantes do espetro, como o autismo de alto funcionamento ou a síndrome de Asperger, que menos frequentemente são reconhecidos do que o autismo com manifestações mais graves e muito menos ainda do que a depressão. Como poderá então ser minimizado o impacto das limitações na comunicação e interação social destas pessoas, nomeadamente no que concerne à sua integração num contexto social ou profissional ajustado, se essas limitações não são adequadamente reconhecidas?

Medindo e intervindo na literacia em Saúde Mental. A avaliação da literacia em Saúde Mental foca-se em três grandes dimensões:
1) conhecimento sobre as doenças mentais, quer acerca da saúde mental em geral, quer sobre doenças mentais específicas;
2) estigma, que pode ser avaliado sob diferentes perspetivas: quer medindo o nível de estigmatização da doença, da pessoa com a doença (que, por vezes, pode ser a entidade estigmatizadora, uma situação descrita como “autoestigma”) ou em relação aos tratamentos e cuidados prestados, quer medindo o nível de estigma experienciado pela pessoa com doença mental;
3) procura de cuidados, quer no que diz respeito à intenção de os procurar e aos comportamentos de procura efetiva, quer no que respeita às crenças e atitudes relativamente à procura de ajuda no âmbito da saúde mental, ao conhecimento acerca dos recursos disponíveis e à capacidade de ajudar os outros a encontrá-los. Existem múltiplas ferramentas de avaliação destas dimensões, que permitem identificar as lacunas e as necessidades de intervenção, com vista ao desenvolvimento de planos de ação dirigidos para melhorar a literacia em Saúde Mental.

Em Portugal, a Direção-Geral da Saúde desenvolveu o Plano de Ação para a Literacia em Saúde 2019-2021, que visa uniformizar e organizar todas as medidas e ações relacionadas com a literacia em saúde. A sua necessidade justifica-se pelo facto de cerca de metade da população portuguesa ter níveis reduzidos de Literacia em Saúde. Os objetivos gerais deste Plano de Ação são:
1) Adotar estilos de vida saudável (contexto diário), sendo a Saúde Mental identificada como uma das áreas prioritárias de intervenção;
2) Capacitar para a utilização adequada do Sistema de Saúde;
3) Promover o bem-estar (na doença crónica)
4) Promover o conhecimento e a investigação. Por outro lado, o Programa Nacional para a Saúde Mental prevê um conjunto de medidas diretamente relacionadas com a promoção da literacia em Saúde Mental, como a realização de ações de informação e formação dirigidas à população geral, utentes e famílias ou o desenvolvimento de ações de promoção da saúde mental e combate ao estigma na população.

No entanto, nenhuma destas medidas se substitui à responsabilidade individual de cada um em se informar (através de fontes fidedignas!) acerca das características e formas de apresentação da doença mental, como estratégia para um reconhecimento precoce da sua eventual presença no próprio, bem como para a compreensão da sua existência e impacto nos outros, e, sobretudo, como ferramenta para facilitar o acesso atempado aos cuidados necessários e tratamentos eficazes.


João Fernandes – Psiquiatra
CADIn – Neurodesenvolvimento e Inclusão
Texto publicado pelo Público a 15/01/2020

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