
UM CONVITE À REFLEXÃO DOS EFEITOS DA PANDEMIA
Um curto espaço de tempo, mas um longo e complexo caminho de aquisições separam o choro do bebé e as conversas com perguntas difíceis e respostas ainda mais complexas que surgem na relação de pais e filhos.
O bebé quando nasce, vem equipado com tudo o que é necessário para ouvir e falar. Um sistema auditivo para ouvir e percecionar sons e um sistema fonador fundamental à produção de sons de fala, com níveis de desempenho que se vão aprimorando ao longo do crescimento. Dentro da barriga da mãe já está exposto a uma imensidão de sons, ruídos do ambiente, conversas e até mesmo a fala dos pais que ao longo de nove meses lhe é dirigida intencionalmente. Quando nasce, começa então a identificação do que são ou não sons de fala e a capacidade de extrair significado das sequências de sons que ouve. É por isso que com dias de vida, os bebés vão dando progressivamente mais atenção aos estímulos sonoros, aprimorando a capacidade de discriminação dos sons de fala.
Antes de dizer as primeiras palavras, o bebé já descobriu que os sons que faz, sejam risos, choros ou outros, provocam alguma reação nos que o rodeiam, descobre que consegue manipular o ambiente à sua volta, o enorme potencial da comunicação!
O choro é a primeira e mais eficaz ferramenta de comunicação que o bebé tem. Produzido desde o instante em que nasce, o choro tem a capacidade de deixar os pais desorientados e aflitos. Mas rapidamente, guiados pelo instinto, os pais vão conseguindo interpretar as diferenças e atribuir-lhe significado. Se pensarmos bem, aquele ser tão pequeno tem uma tremenda capacidade de comunicação utilizando apenas o choro! Toda a comunicação acontecerá daí em diante, tendo por base o significado e valor atribuído pelo contexto (pais e ambiente) às vocalizações e comportamentos do bebé.
Vai descobrindo outras formas de se manifestar para além do choro, fruto do crescimento e maturação não só das estruturas anatómicas, mas também da sua maturação emocional, num caminho de crescimento e descoberta fascinante entre pais e bebé. Tudo isto ocorre de forma muito rápida, e quando damos conta, o bebé já chora menos (assim esperam os pais!) mas interage mais.
Com cerca de dois meses começa a palrar, fruto de um aumento progressivo do controlo dos músculos da face. O bebé esboça os primeiros sorrisos, ouvem-se também os primeiros sons, sons gorgolejantes, parece que estão a brincar com a garganta, estão a descobrir como tudo funciona lá por dentro, a experimentar sensações novas.
Nesta altura surgem as primeiras conversas, pais e bebé num diálogo, o bebé palra, os pais respondem, o bebé sorri e os pais sorriem. São momentos fulcrais para a aquisição da regra básica de comunicação, o pegar a vez, que vai mais tarde permitir à criança participar em conversas, saber iniciar, manter e terminá-las, respeitando a vez do outro. E mais tarde, porque não basta dizer palavras bem ditas e frases bem estruturadas para se ser um bom falante, é preciso saber usá-las numa conversa de forma eficaz. O sucesso do desempenho conversacional depende da adequação do que a criança diz, como diz e a quem diz. Chama-se pragmática, e o seu desenvolvimento tem início antes da produção de qualquer palavra, no início da tomada de vez, na troca, na interação e na reciprocidade de sons entre pais e bebé.
Entre os dois e os quatro meses, os bebés fazem alguma distinção entre vozes. Não é ao acaso que se acalmam e reconfortam quando ouvem vozes familiares, nomeadamente da mãe e do pai, e se desorganizam na ausência delas.
A capacidade de percecionar sons de fala é um pilar essencial à compreensão da linguagem. O desenvolvimento dos sons (fonologia) tem início com o choro e termina na articulação de sons de fala. Daqui à atribuição de significado aos sons que ouvem é um salto qualitativo. Com cerca de nove até perto dos treze meses, o bebé atribui significado às sequências sonoras que ouve, aprende palavras. É o início do desenvolvimento lexical, o vocabulário (semântica), que começa antes da produção das primeiras palavras e se desenvolve ao longo de toda a vida.
Entre os dez e os vinte e quatro meses o número de palavras que a criança é capaz de reconhecer aumenta de forma substancial. Nesta fase o aperfeiçoamento da capacidade de discriminar sons de fala é tal, que a criança é capaz de dizer coisas tão semelhantes como “aba” e “baba” para coisas distintas como água e bolacha, e ser capaz de discriminar e associar corretamente quando os pais se referem a estes mesmos conceitos com estes termos.
No segundo ano de vida há um aumento mais significativo do inventário fonético (da quantidade de sons diferentes que a criança produz). Depois dos 18 meses, a criança começa a juntar palavras, surgem os primórdios das frases. Nesta fase, as diferenças individuais tornam-se mais evidentes, há crianças que dizem uma variedade maior de sons, mas ainda distorcidos, outras que parecem dizer melhor menos sons, umas dizem poucas palavras, mas bem ditas, outras dizem imensas palavras com várias trocas de sons, sílabas, etc.
É com base neste princípio de que a linguagem é um contínuo, que começa antes das palavras e se estende ao longo de toda a vida que devemos refletir sobre o aumento exponencial de pedidos de consultas de desenvolvimento e de terapia da fala, nos últimos meses. Muitos dos bebés e crianças que passaram os seus primeiros meses/anos de vida nestas circunstâncias pandémicas parecem estar a ter, com mais prevalência, dificuldades na comunicação, atrasos no início da linguagem oral e mais alterações na produção de sons de fala. As limitações de interação entre pares, a exposição constante a adultos de máscaras e pais em teletrabalho com os filhos em segurança, mas em “auto-gestão” terão ou não um impacto importante no desenvolvimento de algumas destas áreas em algumas das nossas crianças?
Ana Rita Gonzalez – Terapeuta da Fala do CADIn
CADIn – Neurodesenvolvimento e Inclusão
Texto publicado pelo Público a 06/03/2022
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